Reflita com o estudo “Levanta-te, come e caminha”

Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs

De acordo com alguns teólogos, exegetas e outros estudiosos das Sagradas Escrituras, Elias é a figura profética que representa o pano de fundo, ou o protótipo, para prática do “profeta itinerante de Nazaré”. Além de outras referências implícitas ou explícitas, é ele que, juntamente com Moisés, comparece ao lado de Jesus no momento da Transfiguração. Assim sendo, numa tentativa de buscar elementos para uma espiritualidade da Pastoral dos Migrantes, pode ser ilustrativo tomar o episódio da passagem de Elias pelo deserto (1Re 19, 1-8), para tecer alguns comentários. A imagem do deserto, com o empenho de sua travessia, representa o itinerário de cada peregrino. E representa também o esforço de acompanhar a trajetória da imensa multidão de peregrinos e migrantes.

 

  1. Levanta-te…

Após ter “passado a fio de espada” os sacerdotes de Baal, Elias teme a vingança da rainha Jezabel. Escapando de sua presença, lança-se em fuga pelo caminho, até chegar ao deserto. Tal como Elias, um bom número de fugitivos e de profetas veem-se forçados a escapar da violência. No caso dos imigrantes, trata-se em geral da violência vinculada à pobreza e à miséria. Rechaçados na terra em que nasceram pela carência e pela fome, buscam um futuro mais promissor em solo estrangeiro. Forçados à migração compulsória, arrancam as raízes na tentativa de replantá-las em um chão mais acolhedor.

Já para os refugiados e prófugos, a fuga está ligada preferentemente a motivações ideológicas, políticas ou religiosas, quando não uma mescla de tudo isso ao mesmo tempo. O mesmo ocorre, não poucas vezes, com os profetas indesejados. Incomodam por suas palavras e gestos de fogo, os quais, ao iluminar as trevas fazem tremer os tiranos e poderosos. Neste caso dos refugiados e dos profetas perseguidos, a violência costuma ser mais direta e brutal, aberta e explícita. Tão abertamente declarada que, com frequência, não podem voltar atrás. Estão condenados a caminhar sempre adiante. O retorno pode significar a prisão ou a morte.

O caminho faz todo peregrino perder energias: esgota, debilita e leva ao cansaço. Mais grave ainda quando a marcha atravessa o deserto, sinônimo de aridez e infecundidade. “Elias senta-se debaixo de um junípero”, chegando ao ponto de “desejar a morte”. “Basta, Senhor – diz ele – tirai-me a vida, porque não sou melhor que meus pais”. E deita-se por terra, adormecendo à sombra da árvore. Quantos migrantes, refugiados e prófugos, diante de tantas portas fechadas e de tantas barreiras, encontram-se nessa situação de cansaço, humilhação e desespero! Indocumentados, discriminados, marginalizados! Longe da família, solitários e perdidos, nada lhes resta a não ser “a cara e a coragem”, como diz a canção. Mas a coragem tem seus limites.

E quantos agentes de pastoral, voluntários e gente de boa vontade, que trabalham nesse campo da mobilidade humana, experimentam a sensação de inutilidade, de impotência e de fracasso, chegando igualmente ao cansaço e ao desespero! Diante de milhões e milhões de pessoas “sem raiz, sem pátria e sem ruma” – que é nosso trabalho senão uma pequena gota de água num imenso deserto ressequido! E ainda por cima, quantas vezes devem suportar o desprezo, a falta de reconhecimento, a prostração. Onde encontrar forças para prosseguir nesse caminho árduo e desértico?

Mas o Senhor envia um mensageiro até Elias. “o anjo tocou-o e disse: levanta-te e come!” Ergue a cabeça, não estás só. Basta de lamentações, basta de choro, enxuga as lágrimas do teu rosto. Elas tornam nublada a vista, impedem uma visão nítida. Limpa-as e dirige os olhos ao horizonte. Ao olhar ao redor, verás de perto a solidariedade de teus irmãos, anjos do Senhor, e a presença do Deus em tua existência. A caridade, por um lado, e a fé, por outro, reforçarão ambas tua esperança teológica. Deixa o terreno pantanoso e escorregadio do desespero e dirige teus passos à encruzilhada. Esta, com efeito, pressupõe encontro de caminhos múltiplos, abre o leque das possibilidades. E, por outro lado, requer a necessidade de tomar posição, de fazer uma escolha concreta. Transforma o pranto em novo ponto de partida, em novo impulso para a coragem de recomeçar a marcha.

 

  1. … E come…

Antes de retomar a marcha, porém, é preciso alimentar-se. “Levanta-te e come” – são as palavras do anjo. “Elias olhou e viu junto à sua cabeça um pão cozido debaixo da cinza e um vaso de água. Comeu e bebeu e tornou a dormir”. Mas o anjo do Senhor insiste pela segunda vez: “levanta-te e come”! Não é a primeira vez que o alimento e a bebida do peregrino chegam do alto, enviados pelo Senhor. Nem será a última! Vemos isso na trajetória do êxodo, que marca a dura travessia da escravidão do Egito para a Terra Prometida. O Povo de Israel, peregrino pelo deserto, recebe a água, o maná e as codornizes, pão do céu, para seguir a caminhada (Ex 16, 1-36). Mais tarde, Jesus alimentará as multidões famintas com a “multiplicação dos pães”.

Mais ainda, Ele mesmo – o Mestre – faz de seu corpo e de seu sangue o alimento vivo, como lemos no episódio da última ceia, antes da prisão e morte de cruz (Jo 13, 1-20). Pão que supera a da antiga aliança. “Este é o pão que desceu do céu. Não como o maná que vossos pais comeram e morreram. Que come deste pão viverá eternamente” (Jo 6, 58). Pão, mesa, comunidade! São três palavras indissociáveis, seja do ponto de vista do alimento material (refeição), seja do ponto de vista do alimento espiritual (eucaristia). De fato, o pão partilhado na mesa é inseparável da troca de olhares, palavras, gestos, experiências, histórias, sucessos e fracassos, risos e lágrimas. A partilha do pão convida à partilha da vida: um nutre o corpo, o outro a alma. O verdadeiro tempero de ambos é justamente a presença do outro, dos outros, da comunidade.

E quanto mais íntima e profunda a relação entre os que se sentam à mesma mesa, mais saboroso será o pão e mais enriquecedor o intercâmbio recíproco entre os comensais. Isso explica a dinâmica humana da festa. Ninguém promove uma festa simplesmente porque está com fome e precisa alimentar-se. Essa necessidade fisiológica se resolve em alguns minutos! A festa, ao contrário, alimenta antes de tudo a alma dos respectivos participantes. Mata uma fome muito mais forte e profunda: fome de contato, de relação, de convivência, de estar juntos. Nos momentos festivos, a comida na maior parte das vezes não passa de um pretexto para o encontro fraterno.

Encontro que, pouco a pouco, vai tecendo o fio invisível dos laços comunitários, fazendo crescer o convívio. Mesa e encontro constituem, ao mesmo tempo, ponto de convergência e ponto de partida para o contato, a amizade, o relacionamento e a construção da comunidade. Comunidade como verdadeira família! As páginas do Evangelho mostram à saciedade como Jesus costumava promover a convivialidade. Não só aceitando o convite para comer e festejar na casa de amigos, mas também provocando momentos fortes de partilha e encontro, os quais, como já vimos, culminam na última ceia, antes de retornar para a Casa do Pai.

Da mesma forma que os animais, o ser humano necessita comer. Mas o comer humano, diferentemente dos animais, obedece a um verdadeiro ritual litúrgico. Trata-se de um momento sagrado onde, ao redor da mesa, cada um e todos são convidados a partilhar pão e vida. Daí a magia das flores, dos enfeites, das roupas de gala, das toalhas e guardanapos, do carinho com que são preparados os pratos, do cuidado em organizar a lista de convidados e escolher seu lugar à mesa… Enfim, uma liturgia! Tudo e todos devem seguir as regras de uma convivência rica, prazerosa e agradável. O inverso dessa alegria festiva é justamente o ato de comer só, entre estranhos ou num ambiente marcado pela discórdia. O alimento torna-se intragável, venenoso, indigesto – um remédio amargo.

Evidente que a festa ganha maior grandeza e solenidade na celebração eucarística. A mesa se converte em altar, os convidados se unem em êxtase de adoração e o alimento é o próprio Corpo do Senhor. A proclamação da palavra, as luzes, as flores e a música revestem o ambiente de um mistério humano-divino. Deus e o ser humano, criador e criatura, céu e terra se entrelaçam num banquete que prefigura a festa eterna do Reino de Deus. Junto à mesa e ao altar, junto à refeição e à celebração eucarística realiza-se um movimento de dupla dimensão, aparentemente contraditório.

Por uma parte, um movimento centrípeto, onde o pão e a vida, a fé e a esperança, cada pessoa e toda a comunidade convergem para o centro da comunhão fraterna, do banquete do qual que ninguém está excluído (mesa/altar). De outra parte, um movimento centrífugo, em que, a partir do encontro que nutre e fortalece cada um e todos (refeição/eucaristia), desdobra-se uma série de atividades solidárias para crescimento e enriquecimento da comunidade. A mesa e o altar se convertem em posto de abastecimento para renovar as energias e voltar ao caminho, reabrindo novos horizontes.

 

  1. … Porque tens um longo caminho a percorrer

Comer e celebrar para voltar ao caminho. Mesa e altar, de um lado, o caminho e seus inúmeros desafios, de outro, constituem duas faces da mesma moeda. O alimento e a eucaristia revigoram o peregrino para que este retome a estrada: “tens um longo caminho a percorrer”. O cansaço da travessia, por sua vez, exigirá novos momentos de parada para o reabastecimento, o repouso… E assim sucessivamente. Instala-se uma dialética espiral e crescente entre a difícil tarefa de caminhar e a alegre companhia dos irmãos na refeição e na eucaristia. Em ambos os casos, a presença do Senhor reveste de sentido a existência do peregrino e do profeta.

Diz o texto bíblico que “Elias levantou-se, comeu e bebeu, e com o vigor daquela comida andou quarenta dias e quarenta noites, até Horeb, a montanha de Deus”. O número simbólico de 40 dias e 40 noites, retrospectivamente, nos remete aos quarenta anos em que o Povo de Deus caminhou errante pelo deserto. Prospectivamente, lembra o período em que Jesus esteve também no deserto, antes de ser tentado pelo demônio e de começar sua atividade pública. Em outras palavras, a travessia torna-se inóspita e cheia de adversidades, mas não deixa de ser fecunda. Conduz à reflexão, à conversão e ao encontro com o Senhor na “montanha de Deus”.

A montanha de Deus, além da mesa e do altar, representa outro tipo de parada para o silêncio e a escuta. Silêncio e escuta como terreno fértil e privilegiado onde nasce e se consolida a palavra viva, criativa, libertadora, a palavra que consola e reacende a chama da esperança.  Sem essa parada silenciosa e atenta, para o discernimento da vontade de Deus, tanto o peregrino quanto o profeta, em lugar de uma palavra nova e vivificante (no singular) serão portadores de uma multidão de palavras ocas e vazias (no plural). Somente assim, reabastecidos pelo silêncio revestido da Palavra de Deus, ambos possuirão forças para retomar a estrada.

Completa-se, dessa forma, o trinômio integrado, complementar e indissociável da montanha, da casa e do caminho: a) oração, meditação e contemplação, na busca da intimidade com o Senhor e da sintonia com seu projeto de salvação; b) mesa da refeição e altar da eucaristia, símbolos da vida comunitária e eclesial, no sentido de recuperar as energias e o significado mais profundo da própria existência; e c) caminho e deserto, representando a luta pela sobrevivência por parte do migrante, e a ação sociopastoral por parte do profeta ou agente de pastoral.

São as três dimensões da mesma dinâmica, todas alicerçadas na prática do Homem de Nazaré: a) presença frequente junto a Deus, a quem Jesus, no processo de sua espiritualidade, chama carinhosa e intimamente de Abba (= Pai); b) multiplicação dos momentos de convivialidade, inclusive com os pobres e marginalizados, pecadores e excluídos de seu tempo; c) atividade itinerante pelas “cidades e povoados”, onde o Mestre “sente compaixão” diante das “multidões cansadas e abatidas, como ovelhas sem pastor” (Mt 9, 35-38). Uma dimensão reforça e ao mesmo tempo é reforçada pelas outras. A montanha e o mesa/altar fazem o peregrino e o profeta retornarem ao caminho e este, por sua vez, exige uma frequência regular e perseverante junto à presença de Deus e dos irmãos, tanto na vida comunitária quanto na constância da celebração.

Caminhar faz parte da própria condição humana. E dura por todo o percurso da vida. Somos todos peregrinos, caminheiros sobre a face da terra. “Tens um longo caminho a percorrer”. Daí a necessidade de intercalar a travessia com momentos intensos de parada, oração, reflexão e celebração. O longo caminho deve estar pontilhado de postos de abastecimento, caso contrário será impossível atravessar o deserto. Os postos de abastecimento, por sua vez, longe de bloquear ou paralisar a marcha, conferem-lhe novo vigor missionário. Como revela a própria denominação, abastem para garantir sem problemas uma nova etapa.

O mais importante é dar-se conta que o Senhor está alerta. Na escravidão do Egito, revela-se atento, sensível e solidário diante da condição do seu povo: vê sua miséria, ouve seu clamor e conhece seu sofrimento. Por isso, desce para libertá-lo da opressão e das garras do Faraó (Ex 3, 7-10). Caminha junto em meio ao povo pelas estradas do êxodo, do deserto, do exílio e da diáspora.  Depois, pelos caminhos da Galileia, mostra sua face resplandecente, misericordiosa e compassiva diante dos doentes, dos pequenos, dos indefesos, dos sofredores… privilegiando os últimos! E oferece o perdão, nova oportunidade, aos pecadores arrependidos. Quando necessário, tanto no escritos do Antigo Testamento quanto do Novo, envia seus anjos com o ”pão e a água” para revigorar as energias dos que estão em marcha e dos que, igualmente em marcha, os acompanham no campo da mobilidade humana. “Não tenham medo, eu estarei com vocês até o fim dos tempos” – diz o Senhor Ressuscitado.

 

Nampula, Moçambique, 11 de agosto de 2015